Dia Mundial da Água: Campanha em Defesa do Cerrado lança 15 fascículos com histórias de povos e comunidades do Cerrado

 Dia Mundial da Água: Campanha em Defesa do Cerrado lança 15 fascículos com histórias de povos e comunidades do Cerrado

23 de março de 2023 Off Por Ray Santos
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Mato Grosso do Sul está presente com caso sobre indígenas Guarani, Kaiowá e kinikinau; Publicações apresentam dimensão fundamental da vida no Cerrado: seus povos são guardiões das águas

Hoje, 22 de março, Dia Mundial da Água, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado lança uma série de 15 fascículos com os 15 casos de violações contra povos e comunidades tradicionais de oito estados do Brasil analisados pelo Tribunal Permanente dos Povos (TPP) em Defesa dos Territórios do Cerrado. Em 10 de julho de 2022, o júri do TPP apresentou seu veredito, condenando pelos crimes de Ecocídio do Cerrado e genocídio de seus povos o Estado Brasileiro, governos nacionais e estrangeiros, além de entidades, órgãos e empresas nacionais e internacionais. Os 15 fascículos, revisados e atualizados, fazem parte da série “Eco-genocídio no Cerrado”, produzido pela Campanha e que terá, ainda este ano, outras duas publicações lançadas.

Além do Mato Grosso do Sul, os casos se concentram nos estados da Bahia, Goiás, Mato Grosso, Maranhão, Minas Gerais, Piauí e Tocantins, e foram detalhados ao longo do processo das Audiências Temáticas do TPP entre 2021 e 2022, e durante sua Audiência Final, em julho do ano passado. Os 15 casos são representativos de territórios em conflito, e foram selecionados a partir de um amplo processo, envolvendo lideranças comunitárias, movimentos sociais e organizações de assessoria popular. Não se tratou de buscar o ecocídio e o genocídio em casos específicos — embora estes sejam sua expressão mais concreta -, mas de compreender, a partir dos casos representativos, a sistematicidade geográfica (em todo o Cerrado) e temporal (no último meio século) do crime de ecocídio do Cerrado e do genocídio dos seus povos.

Conheça o caso do Mato Grosso do Sul

Caso nº1 • MS — Povos Indígenas Guarani e Kaiowá e Kinikinau X Estado do MS, fazendeiros e grileiros do agronegócio exportador

Todos os fascículos estão disponíveis online para download em versão digital, mas também terão uma versão impressa que será entregue aos povos indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais que tiveram suas histórias contadas nas publicações. O objetivo é que o material sirva como instrumento de luta, incidência e memória para as comunidades em suas ações perante órgãos públicos, governos e representantes do sistema de Justiça, como ministérios e defensorias públicas. Os fascículos em formato digital serão enviados aos ministérios do Meio Ambiente, dos Povos Indígenas e de Direitos Humanos, além de universidades públicas, grupos de pesquisa, ministérios e defensorias públicas e secretarias de meio ambiente dos 11 Estados por onde se estende o Cerrado.

Povos das Águas

Em comum, as histórias das comunidades presentes nas 15 publicações trazem um dado fundamental do Cerrado: seus povos são guardiões das águas, e sua permanência nos territórios é parte da garantia de proteção das águas do planeta.

Isso porque, no Cerrado, nascem alguns dos principais rios e aquíferos que alimentam bacias hidrográficas importantes da América do Sul, tornando esta região ecológica um grande regulador hídrico continental. Suas águas vertem para oito das 12 regiões hidrográficas no Brasil, além das bacias do Paraná-Paraguai Prata, no cone sul-americano. Essa característica, que rendeu ao Cerrado o apelido de “berço das águas”, não é casual, mas resultado de um complexo sistema constituído pelo relevo (chapadas e vales), solo e raízes das árvores do Cerrado. Nas chapadas e planaltos do Brasil Central, as raízes profundas da vegetação dominante típica do Cerrado promovem a infiltração das águas das chuvas, constituindo a mais importante área de recarga hídrica do país, o que lhe valeu o apelido de “caixa d’água do Brasil”.

“Sob o Cerrado se encontram os dois principais aquíferos do país – o Guarani e o Urucuia-Bambuí, dentre os 79 sistemas aquíferos existentes, segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Estas reservas subterrâneas, além de retroalimentarem o ciclo hidrológico e favorecerem a perenização das águas, são também co-responsáveis pelo equilíbrio de vários tipos de ambientes úmidos do domínio, tais como as zonas riparianas, veredas, baixadas alagadas e áreas úmidas naturais”, diz trecho da peça de acusação formulada pela Campanha para subsidiar o TPP no julgamento de Estados e empresas acusados dos crimes de ecocídio do Cerrado e genocídio dos seus povos. É a relação intrínseca dos povos do Cerrado com suas águas que garante que elas não se esgotem. Pelo contrário: ao protegê-las, como quem protege a própria vida, os povos do Cerrado garantem a multiplicação das águas.

“Como o Cerrado é o berço das águas, todos os povos do Cerrado constroem uma relação íntima com as águas desse imenso domínio macroecológico e paisagístico. Mas as comunidades tradicionais vazanteiras, retireiras, veredeiras, pantaneiras e de pescadores artesanais que habitam as ilhas e beiras de rios que nascem no Cerrado, como o São Francisco, o Araguaia, o Tocantins e o Paraguai, têm seus modos de vida intrinsecamente conectados aos ciclos das águas. Os nomes variam a depender do lugar, mas há muito em comum, como o fato de que, a partir do saber tradicional, herdado e acumulado ao longo de gerações observando e convivendo com a cheia e a vazante dos rios, as comunidades tradicionais e os povos indígenas de diversas regiões do Cerrado têm nas águas parte integral de seu território. (…) Em diversas partes do Cerrado e suas zonas de transição, esses povos e comunidades enfrentam a apropriação, contaminação, exaustão, assoreamento e barramento dos rios e águas pelos grandes projetos da mineração, agronegócio, portos e outros empreendimentos logísticos, usinas hidrelétricas e aquicultura. Ao mesmo tempo, se organizam em várias articulações e movimentos, a depender da região de origem, para lutar pelos seus direitos e fazer frente às ameaças a seus territórios”, informa trecho do livro “Saberes dos Povos do Cerrado e Biodiversidade”, produzido pela Campanha.

Estresse hídrico

O avanço do desmatamento no Cerrado para a implantação de monocultivos, especialmente de soja, tem provocado exaustão hídrica, a morte de diversos rios e a atual crise energética no país. “Os extensos e antiquíssimos chapadões sedimentados desde o Paleozóico, com suas topografias planas, paisagem geomorfológica dominante nos Planaltos Centrais do Cerrado, se constituem na mais importante área de recarga hídrica do país, que detém a maior reserva de recursos hídricos do planeta. E é exatamente a região dos Cerrados com suas chapadas, área de recarga hídrica que não conta com proteção especial na legislação ambiental. Esta protege o topo dos morros florestados e as beiras dos rios e outros corpos d’águas, mas não protege as extensas chapadas dos Cerrados. Assim, o desmatamento das chapadas para dar lugar, sobretudo, a monocultivos de soja, tem destruído o sistema hidrológico do Cerrado, causando a morte e a diminuição da vazão de diversos rios. Por outro lado, cerca de 50% do total de outorgas hídricas feitas pela Agência Nacional das Águas (ANA) e do total da vazão de água outorgada foi também no Cerrado e suas zonas de transição. Cerca de 60% dessa água foi utilizada na agricultura irrigada”, diz a peça de acusação que subsidiou o júri do TPP.

Em mapasproduzidos pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano (IF Baiano/Campus Valença) – um deles ainda inédito -, é possível observar que o estresse hídrico no Cerrado, ou seja, a relação entre oferta de água e seu consumo, é maior em regiões onde há mais desmatamento. Segundo os dados dos mapas, nos últimos 20 anos, a área desmatada no Cerrado aumentou 40%. Em média, foram perdidos 1,45 milhões de hectares por ano neste período. As devastações coincidem com a ampliação do monocultivo da soja irrigada, especialmente na Bahia e no Maranhão.

O oeste da Bahia ocupa os três primeiros lugares de uma lista de 10 municípios onde mais se desmatou nos últimos 20 anos: Formosa do Rio Preto, São Desidério e Correntina. Em Formosa do Rio Preto e Correntina estão dois dos 15 casos detalhados nos fascículos e apresentados ao Tribunal Permanente dos Povos.

Em Formosa do Rio Preto, Comunidades Tradicionais Geraizeiras lutam pelo reconhecimento de seus territórios tradicionais, enquanto enfrentam um conflito histórico com o Condomínio Cachoeira Estrondo, liderado pela família do empresário Ronald Levinsohn (falecido em 2020) e por grande sojicultores, como a família Horita, entre outros, que, utilizando da estratégia da grilagem de terras públicas, promovem, em articulação com forças públicas e privadas de segurança, há pelo menos 45 anos, expulsões, apropriação ilegal de terras, desmatamentos, contaminação das águas, cerceamento do direito de ir e vir, controle territorial, roubo e morte de animais, violências físicas e psicológicas, ameças e tentativas de assassinatos de lideranças.

Em Correntina, Comunidades e Territórios Tradicionais de Fecho de Pasto também lutam pelo reconhecimento de seus territórios tradicionais, enquanto enfrentam conflitos fundiários e socioambientais, vivenciando processos históricos e atuais de grilagens envolvendo mais de um milhão de hectares, violências, apropriação dos territórios e das águas protagonizadas por empresas nacionais e estrangeiras produtoras e comercializadoras de grãos, e outras especializadas em compra e venda de terras, a exemplo da empresa Agrícola Xingu S.A., parte do grupo multinacional japonês Mitsui & Co, que atualmente arrenda terras à empresa SLC Agrícola.

“O Atlas da Irrigação produzido pela ANA (2017) destaca que o Brasil está entre os dez países com a maior área equipada para irrigação do mundo, apontando um crescimento de 43,3% da área efetivamente irrigada por pivôs centrais no Brasil entre 2006 e 2014, o que significa mais de 380 mil hectares”, afirma a advogada e secretária executiva da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, Joice Bonfim, em sua dissertação de mestrado “Apropriação das águas, Matopiba e territorialização do agronegócio no oeste da Bahia: as águas sem fronteira de Correntina”, de 2019.

Ainda segundo a dissertação, o Atlas da ANA aponta que, entre 1960 e 2015, a quantidade de área irrigada no Brasil passou de 455 mil hectares para cerca de 6,95 milhões. “Destaca-se que a perspectiva brasileira é de continuidade da expansão, indicando o Atlas que em 2030 o país deve atingir cerca de 10 milhões de hectares irrigados, havendo ainda possibilidade de expandir ao máximo para 76,19 milhões de hectares, que seria todo o potencial irrigável brasileiro.”

Diante do grave cenário de violações contra o Cerrado, seus povos e suas águas, e da ameaça real de exaustão das fontes de água doce do planeta promovida pela ação do agronegócio exportador, o lançamento dos fascículos em formato digital, para ampla difusão, e em formato impresso, enquanto instrumento de luta e incidência para os povos e comunidades, marca um esforço da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado para renovar sua missão de construir, coletivamente, diálogos e ações capazes de promover a proteção da região ecológica e dos seus viventes, e fomentar a potência das suas águas como fonte de vida e encontro. O Cerrado é o berço das águas e promove o encontro por meio das águas. Da mesma forma, os povos do Cerrado são como as águas: crescem quando se encontram.

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