Carlos Alberto dos Santos Dutra – sábado, 8 de fevereiro de 2025
O asfalto ficou para trás. E a poeira da estrada por um bom trecho acompanhava o olhar daquele jovem que desvendava amiúde o interior daquele torrão ainda desconhecido.
Cana, muitos pés de cana de açúcar de um lado da estrada contrastavam com a outra margem daquela via, que mais parecia uma linha, muito reta, costurando as bordas do progresso e da civilização.
Eram sítios e chácaras, vestígios de um antigo assentamento, onde pequenos lavradores desafiavam o vento e o deserto verde à sua frente, buscando produzir o alimento que o tanque de combustível não come.
Os agricultores iam chegando. O assentamento Regência, no município de Paulicéia-SP, naquela manhã era o centro da terra e das atenções. Não, não havia jornalistas ou imprensa no local para relatar essa ousadia. Eventos dessa natureza não costumam ser bem-vindos aos olhos dos empresários, donos das terras e dos meios de comunicação social, como se dizia antigamente.
Mas o coração da vida pulsava e a esperança estava plantada ali. Tinha nome e sobrenome. Razão suficiente para angariar simpatia, apoio e homenagem de ação de graças.
Aos olhos do homem simples, que se contenta com o pouco que Deus lhe dá e o muito que isso representa, aquele encontro era como uma oportunidade de falar e denunciar, conclamar e reivindicar. Mas, acima de tudo, brindar e celebrar; festejar a caminhada e a parceria alcançada. Por isso estavam ali.
E foi assim que seu José Luiz das Chagas, sua família, vizinhos e amigos daquele assentamento abriram as portas do seu santuário para apresentar a todos o seu maior tesouro. Relíquia já partilhada desde há muito por aqueles que um dia disseram: –basta ao alimento de papel. Plantas transgênicas, chega! Agrotóxicos, nunca mais! Queremos vida saudável. Queremos semente que geram vida saudável.
E lá estava o jovem Christian, coordenador diocesano das Comunidades Eclesiais de Base-CEBs da Diocese de Marília-SP; o padre Severino, expoente da Comissão Pastoral da Terra no Estado de São Paulo; o padre Domingos e seu carisma e violão presidindo a celebração, ao lado do pastor da Igreja Batista e este diácono escrevinhador, todos saudavam aquele dia de luz.
Em meio as palestras, discursos, músicas e poesias, o tema das sementes crioulas foi conquistando os corações daqueles, ainda distantes e pouco envolvidos com o candente tema da vida. Vida em abundância que insiste brotar de uma natureza em luta, fonte de todos os recursos cada vez mais dilapidados.
E a maior de todas as lições que nos foi ensinada pelos nossos pais…, mas que logo esquecemos: guardar uma parte da colheita de hoje para o próximo plantio de amanhã.
Eis o segredo, o tesouro escondido e protegido pelos guardiões das sementes. A ciência de saber selecionar cada espécie mais produtiva e reservá-la para o plantio cada safra sob o império do sol.
Sim, recorda a professora Izabel Castanha Gil: –a vida moderna alterou os nossos hábitos. O aumento da população e a rotina urbana nos distanciou da produção de nossos próprios alimentos, o que nos impõe usar cada vez mais a razão e a sensibilidade. Grandes desafios requerem pequenas soluções que irradiam e transformam o todo.
Seu José Luiz, com lágrimas nos olhos desabafa sobre o desalento que vê: –o inconveniente das monoculturas que favorecem as pragas e estimulam o uso de venenos. Tudo isso custa caro e, apesar do aumento da produção e da produtividade, a agricultura industrializada que conhecemos hoje, não garante a mesa farta para todos. Se a gente não planta, a cidade não janta.
É verdade, confirma o padre Severino: –a ciência tem dado respostas no rumo da produção com tecnologias cada vez mais sofisticadas, porém, tudo isso é insuficiente, pois as novas sementes produzidas são manipuladas geneticamente, perdendo as características originais. Além do mais vivemos um mercado injusto que requer seja mudado.
A causa é justa. E o cultivo das sementes crioulas se apresenta como resposta virtuosa ao império da máquina que alimenta gente e bicho, tudo igual. Porque para o agricultor, o cultivo direto e as trocas amistosas, é mais que simplesmente colocar a semente no chão. Trata-se de uma visão de mundo que valoriza a harmonia entre a natureza, a saúde e a solidariedade.
Durante aquele belíssimo encontro, rico em experiências vividas pelos participantes e partilhadas no diálogo entre os produtores, acadêmicos e instituições ali presentes, a mesa servida era farta com produtos da roça, esbanjando o vigor da natureza, fruto de sementes que expressam a biodiversidade do lugar onde nasceram e oferecem-se, uma vez colhidas e guardadas, como um precioso banco de germoplasma para a presente e futuras gerações.
Parabéns seu José Luiz, familiares e amigos, entidades e apoiadores deste evento. Obrigado pelo convite. A pajada dita lá no seu santuário segue AQUI numa modesta homenagem.
Homenagem ao Sr. José Luiz
Guardião das Sementes Crioulas
1-Amigos aqui presentes
Peço licença um momento:
Algo no meu pensamento
Me diz aqui pra falar.
Nesta hora homenagear
Um homem que com razão
Chamado de guardião
Das sementes que conhece
Elevo a Deus uma prece
Agora que celebramos
Abre a alma do paisano
Que nesta hora saúda
Pedindo aos Céus sua ajuda
Para estes rostos contentes
Festejando a semente
Crioula, plantada no chão.
Não por acaso, irmão:
Esforço de algum vivente
Que pôs a mão no batente
Algo como uma Oração.
2-A vida seguia em frente
Para o roceiro Luiz
Parece, foi Deus que quis:
Sua vida abençoar
E com Ele poder contar
Parceiro de fé e luta
Por ser homem de labuta
Vivia do leite e gado
Depois, viu o campo semeado:
Arroz, feijão, amendoim,
Urucum, vassoura, aipim.
Isso sem falar no queijo
E os doces benfazejos
Primorosamente feitos
Mãos da patroa, perfeitos
Que ao lado do seu Luiz
Tinha uma família feliz
Sem botar nenhum defeito.
3-Mas lá no fundo existia
Uma ânsia de crescer
Diversificar pra valer
Toda a sua produção.
E lá vai o nosso irmão
Seu Luiz no Sindicato
Delineou novo formato
Agricultura familiar
E um novo despertar
Rumo à agro ecologia
O raiar de um novo dia
Ver o sítio sustentável
Com manejo, admirável
E todos que se achegavam
Com ele já festejavam
A luta que começava
Na semente que plantava
Crioula, para o futuro:
Um alimento mais puro
Que a todos alegrava.
4-Um novo tempo surgiu
Parido no Assentamento
Regência, e seus rebentos
Que nasceram no caminho
Partilhados com carinho
Tornaram verde a paisagem
Estudos, palestras, viagens
Verdadeiro movimento
Que levou conhecimento
Ao governo estadual
O apoio municipal
Que soube estender a mão
E aprender a lição
De propor vida saudável
Como política viável.
Sem falar das entidades:
Paróquia, universidade
Parceiros e apoiadores
Assentados, lavradores
Setores da sociedade.
5-Sim, a terra é nossa casa!
Disse certa vez seu Luiz
E hoje destampa a raiz
Daquele sonho primeiro
Quando ainda era roceiro
E já cuidava o terreno:
Alimentos sem veneno
Sementes crioulas pra vida
Nossa terra prometida
Transgênico: nunca mais
Agrotóxicos, ficou pra trás.
Deus te abençoe e te guarde
Siga a vida sem alarde
Confie no Deus pequeno
Pois nosso Pai Nazareno
Sabe sempre o que faz:
E se achou que és capaz
De tamanho compromisso:
Que não te falte serviço
Neste santuário de paz.
Publicado originalmente em Paulicéia-SP, em 19 de agosto de 2019.
Fonte: https://www.institutocisalpina.com.br/os_guardioes_das_sementes_crioulas.html
Quem sou eu
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