O pranto da mãe de Deus e o pranto de nossas mães face ao Covid-19

4 de abril de 2021 0 Por Ray Santos
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Leonardo Boff

São muitas as mães que choram seus filhos e filhas ceifados pelo Covid-19. O pranto de nossas mães nos remete ao pranto de Maria que acompanhou seu filho Jesus até o pé da cruz (Jo 19,25).Um soldado vem e perfura o lado e o coração de Jesus.

Dois seus conhecidos, cuja solidariedade superou o medo, José de Arimatéia e Nicodemos, desprenderam da cruz seu corpo. Ungiram-no e envolveram-no em faixas de linho com aromas.Maria recebe agora em seus braços o filho todo ferido e mutilado.

A serenidade singular de seu semblante pálido transfigura as chagas.O corpo estigmatizado recupera uma rara formosura. Enquanto o acaricia Maria chora e, soluçando, fala:“Filho meu, meu Filho, o que te fizeram?Tu lhes anunciaste uma grande libertação e eis a sorte que te impuseram!Tu curaste a tantos com tuas mãos e eis que as transpassaram!

Filho meu, meu Filho, que te fizeram? Tu restituíste a vida a tantos e eis que tantos se uniram para tirar-te a vida!Tu viveste fazendo só o bem e eis o mal que te causaram!Filho meu, meu Filho,o que te fizeram?

Que mais devias ter-lhes feito e não o fizeste?Não lhes deste o corpo, as vestes e a vida? E eis que te elevaram numa cruz!Que mais devias ter-lhes feito e não o fizeste? Não lhes deste o sangue todo? E eis que perfuraram o teu coração!Filho meu, meu Filho, cumpriste a vontade do Pai que queria tua fidelidade até o fim: nunca te acomodaste a este mundo; não quiseste o pouco mas o todo: o Reino de teu Pai, feito de amor, de justiça e de fraternidade.Repousa, Filho meu, porque teu Pai, por tua vida, por tua entrega e por tua morte, já se apiedou e ofereceu a salvação a todos.”

Assim como gerou o Filho de Deus e o acompanhou até à cruz (cf.Mc 15,4; Jo 19,25), Maria, que está com corpo e alma na glória, acompanha agora seus irmãos e irmãs: todos nós, especialmente as nossas mães. Ela não fica indiferente ao drama de nossas mães.

Como em seu Magnificat, tomou partido pelos humildes contra os orgulhosos, pelos pobres contra os prepotentes (cf.Lc 1,51-53), continua a suscitar mulheres corajosas que se empenham na realização da justiça e na superação das discriminações impostas secularmente a elas.

Há uma dimensão feminina e maternal na salvação que Deus nos oferece. Este caráter vem de Maria porque ela é mãe de Cristo e mãe de todos.

A salvação divina é terna como o amor materno; aconchegante como o gesto da ‘magna mater’ que toma o filhinho em seus braços, acaricia-o e dá-lhe de comer (Jr 11,1-4); radical e inteira como sóis ser o amor da mulher e da mãe (Is 49,15-16).

Maria continua se compadecendo de suas irmãs na terra, acompanha-as em seus sofrimentos devidos às perdas provocadas pelo vírus letal; reconforta-as com seu olhar de compreensão, de apoio e de empatia como fez com seu filho Jesus.

O corpo de Jesus morto, coloca uma irretorquível interrogação: “O sofrimento injustamente infligido quem o pagará?”.

Deus não se desinteressa pelos crimes e pelas vítimas. “Serão pedidas contas pelo sangue dos profetas mortos desde o começo do mundo” (Lc 11,50) e pelo sangue do Profeta dos Profetas, que foi Jesus.

Mas não só: pedirá contas também das ditaduras militares, como a nossa de 1964, pelas vítimas que fez, como o jornalista Vladimir Herzog em São Paulo; pelas mulheres torturadas, estupradas e mortas pelo DOI-CODI do Rio de Janeiro; pelos esquartejados e incinerados da Casa da Morte em Petrópolis. Como alguém, a exemplo de nosso governante e de muitos militares, podem celebrar um crime  de lesa-humanidade?

Deus exige reparação da injustiça, reparação que se faz pela mudança da mente e do coração (conversão). E o clamor da injustiça perversa não esmorece enquanto não impere a justiça necessária.Haverá sempre espíritos que não se resignarão ao cinismo e ao pragmatismo; à opressão e ao sequestro da liberdade, decretados em função de manter uma ordem que produz, e sempre reproduz, empobrecidos, odiando-os porque  já se organizam para sair da exclusão e se comprometem a mudar este tipo de sociedade. Estes espíritos irresignados sonharão, como Jesus, com um mundo amoroso e justo para todos.

Assumirão todos os riscos para construí-lo. Continuarão a ser condenados e crucificados em nome desta esperança.

Os ideais não são sepultados com seus cadáveres. Antes pelo contrário, seus corpos lacerados pela repressão e pela violência se transformam em sementeira de novos seguidores: “se o grão de trigo não morrer, não produzirá fruto”(Jo 12,24).A Paixão de Cristo vai sendo completada em cada geração: com seus compromissos e lutas, e com seus mártires, cujo sangue continuará clamando ao céu pelo advento do Reino de amor e de justiça.

Maria chora sobre todos eles, e pelas mulheres lutadoras, como chorou sobre Jesus. No pranto da mãe de Deus está o pranto de todas as nossas mães que perderam seus entes queridos, sem poder despedir-se deles e fazer o seu devido luto. 

Que Maria enxugue suas lágrimas e as console!A interrogação de todos se ergue como um clamor até Deus: “até quando, Senhor, até quando?”.E o Senhor que é misericordioso manterá viva a nossa esperança, transformando a interrogação em súplica:“Venha a nós o vosso Reino de vida, de amor e de justiça,  assim na terra como no céu”.

João Baptista Herkenhoff


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