Antônio Pitanga, os Ofaié e o Ivinhema

Antônio Pitanga, os Ofaié e o Ivinhema

14 de agosto de 2024 Off Por Ray Santos
Compartilhar

Carlos Alberto dos Santos Dutra (Carlito)

A simpatia é sempre uma porta por onde a alma e a percepção transitam. Expressa o que somos em essência e como vemos as coisas em si, em imanência. Confesso que foi por aquela porta, aparentemente frágil, que me vi transportado ao deparar-me diante de tanta empatia que aqueles olhos e sorriso inspiravam.

E cá estávamos naquele Galpão das Artes, transformado na catedral do cinema e da cultura do lugar, diante de um evento de extraordinária importância para o Estado de Mato Grosso do Sul e que reunia ali renomados artistas, produtores culturais e significativas obras audiovisuais produzidas no País.

Sim, tratava-se do Festival de Cinema do Vale do Ivinhema que neste ano celebrou sua 18ª edição promovendo a divulgação dos 25 anos do Parque Estadual das Várzeas do Rio Ivinhema, uma área de preservação ambiental de 72 mil hectares, verdadeiro santuário da natureza localizado na confluência das águas do rio Ivinhema com o rio Paraná num cenário paradisíaco.

Em meio a um roteiro de múltiplas atrações e atividades culturais que reuniu desde show do cantor Chico César, MC Guarani Anarandá, Celito Espindola e Paulo Simões, o recital de Eduardo Martinelli e Brener Gonzales que homenageou o flautista Potápio Silva, entre outros, projetou mais de 25 filmes recentes, curtas e longas metragens, premiados nos principais festivais nacionais e internacionais, amostra sob a curadoria do cineasta Joel Pizzini.

O festival também exibiu em avant-première o filme documentário de Ricardo Câmara e Maurício Copetti, “Inventário das Várzeas do Ivinhema”, com a participação do Prof. José de Souza Kói e do cacique Marcelo da Silva Lins, ambos Ofaié, que mostrou um tríplice olhar, na visão arqueológica, antropológica e histórica desta várzea contando com a poesia cosmogônico dos últimos representantes do  povo Ofaié, cujos ancestrais ali viveram fazendo um contraponto entre a ciência e a narrativa oral deste povo, antigos habitantes do lugar.

O festival também fez uma homenagem ao centenário da violeira Helena Meirelles (in memoriam) e ao ator Antônio Pitanga que celebrou 85 anos no dia 13 de junho último, carregando nos ombros os louros de ter realizado mais de 70 filmes, 50 participações na televisão e uma dezena de peças teatrais que lhe conferiram inúmeros prêmios.

E ele estava lá, sentado em meio a plateia assistindo o lançamento do filme sobre as várzeas do Ivinhema. De chapeuzinho na cabeça e um largo sorriso que lhe iluminavam os olhos, era um pontinho negro naquele plenário branco formado por artistas, intelectuais, profissionais das artes, e comunidade local.

Enquanto os protagonistas e a equipe técnica de produção era convidada para compor a mesa dos debates, ao final da projeção que foi aplaudida de pé, a música acalanto “O Povo do Mel”, trilha do filme, composta por Celito Espindola e Paulo Simões, ainda embalava os ouvidos e o coração de todos.

Foi neste momento que a atenção da plateia deitou o olhar mais acurado sobre o ilustre visitante, Antônio Pitanga ali presente. Não despertada, talvez, pela aura que o envolvia, nutrida pelo senso comum e o currículo invejável deste ator protagonista de uma vasta lista de obras audiovisuais consagradas, mas que foi percebida e sentida mais amiúde através das palavras que brotaram de sua alma: —Ela sangra, disse ele.

As margens frias e alagadiças daquela várzea, com certeza, sentiram o calor e a força destas palavras. Sob nossos pés, era como se voltássemos a pisar sob um vasto sitio arqueológico, num reencontro cheio de vida e morte dos que ali viveram e ainda insistem em viver pelas dobras da memória. –Este filme faz a nossa alma sangrar, continuou.

Não sangue de dor, mas de reverência, reconhecimento, confiança, lembrança, e esperança, parecia dizer quando associou a luta pela autodeterminação dos povos originários, os povos indígenas, com a luta pela igualdade racial do povo negro no Brasil.

–O negro e o índio, eles são os pilares da formação histórica deste país, disse com voz firme e corajosa diante de um aparente silêncio da verdade encartada nos livros, no mais das vezes negada e soterrada pela pá de cal do esquecimento e do embranquecimento da pele que pintou em falsete as cores oficiais desta pindorama, terra brasili.

O diálogo entre o indígena Ofaié, José Koi e o ator Antônio Pitanga, aos poucos, foi contagiando o ambiente rompendo com a fleuma de alguns, movidos pelo rumo das palavras de um discurso amoroso, diria Roland Barthes, cheio de vida e sabor, que nos arrebatava a uma visão holística do que representava para todos os sobreviventes do desterro e preconceito aquele momento.

A história e o testemunho dos Ofaié, através das imagens daquele filme lançaram sementes de um sentimento de pertença até então adormecido na história de Ivinhema e que ainda se encontrava sob as folhas daquele chão. 

O sopro de vida, ao som do chocalho Ofaié e Guarani do passado, e as palavras de fé e esperança de Antônio Pitanga, hoje, faziam soerguer em nós as palavra do Tamoio, de Gonçalves Dias: Não chores, meu filho; não chores, que a vida é luta renhida: viver é lutar, a vida é combate…

Os créditos do filme, aos poucos, vão esmaecendo na tela e os espectadores vão deixando o lugar também. O murmúrio das vozes e os flashes das câmeras rodeiam o ilustre convidado, quando todos desejam eternizar aquele momento numa foto e num abraço com aquele cidadão especial e diferenciado.

Ao longe, as palavras de Antônio Pitanga  permanecem ecoando no coração do lugar, educando e evocando chamas sempre vivas, conclamando pelo respeito e os direitos dos povos negros e indígenas…

Voz que se confunde com a bulha das águas do antigo Igaray, nome dados pelos primeiros viajantes ao Ivinhema, que prossegue o seu curso pelas várzeas, desafiando a ordem e o tempo, e recolhendo de suas margens as lembranças da erva-mate, o som das vozes Guarani e o acalanto dos Ofaié, o doce e gentil povo do mel…

 Ivinhema/MS, 13 de agosto de 2024.

Fotos: Divulgação


Compartilhar