Pesquisa traça perfil de pessoas processadas por tráfico de drogas
22 de setembro de 2023Raio-x mostra que processos envolvem jovens de até 30 anos que cursaram, no máximo, o ensino fundamental e que a maioria não é branca
Um vasto panorama sobre a condução processual dos órgãos de justiça criminal, desde a fase policial até o sentenciamento, contendo dados sobre réus, testemunhas, provas, procedimentos policiais, trâmites implicados na defesa e na acusação, bem como condicionantes para a decisão judicial em primeira instância. Este é o conteúdo de dois levantamentos, de abrangência inédita, que a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos do Ministério da Justiça e Segurança Pública (Senad/MJSP) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) lançaram em conjunto, nesta sexta-feira (22/09), em Brasília.
A pesquisa cobre mais de 5 mil autos processuais por tráfico de drogas sentenciados em 2019, no âmbito dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça estaduais, a partir de dados presentes na base de processos penais do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Números contidos no relatório permitem uma análise empírica da aplicação da Lei de Drogas brasileira (Lei 11.343/2006). Um dos exemplos mais relevantes demonstra elementos já apontados pela literatura produzida sobre o perfil majoritário de réus por crimes previstos nesta lei: jovem, de baixa escolaridade, não branco e que, quando houve flagrante de porte de drogas ilícitas, tinha quantidades relativamente pequenas.
Entre os processos em que foi possível captar tais informações nos tribunais federais e estaduais, o perfil era, respectivamente: jovens de até 30 anos (42,5% e 73,6%), que cursaram no máximo o ensino fundamental (28,3% e 68,4%) e não brancos (68,1% e 68,7%). Além disso, os resultados mostram que 30% dos réus processados por tráfico nos tribunais estaduais alegaram que a droga apreendida se destinava ao uso pessoal e que 49% dos réus afirmaram ser usuários ou sofrer com dependência de drogas. Na Justiça federal, os resultados foram bastante díspares: 4% e 10%, respectivamente.
A secretária Nacional de Políticas sobre Drogas, Marta Machado, destaca que o estudo, além de ser útil para subsidiar a construção e o monitoramento de políticas públicas, também poderá incentivar o diálogo da Senad com o sistema de Justiça e com as forças de segurança pública, contribuindo com o aperfeiçoamento da aplicação da lei.
“Um dos dados mais relevantes é o que evidencia o incontestável quadro de racismo institucional no sistema de justiça criminal, reforçando a necessidade premente de ações que incidam sobre os vieses raciais dos agentes de segurança pública e do sistema de Justiça”, enfatiza Marta.
Abordagens e flagrantes
O local da abordagem também foi documentado na análise. Nos processos da justiça estadual, que representam 99% do universo de interesse da pesquisa, metade dos flagrantes ocorreu em via pública, praça ou parque (50,6%), enquanto em 32,9% dos casos os acusados foram surpreendidos em sua própria residência e 13,6% na casa de outras pessoas. Entre os objetos apreendidos com os réus processados estão dinheiro (59,4%), celular (52,2%) e balança (20,4%). Armas e munições aparecem em menos de 20% dos processos. Apesar do alto percentual de telefones celulares apreendidos, em apenas 5% dos casos houve laudo pericial ou quebra de sigilo telefônico nesses aparelhos.
Ainda no que se refere aos tribunais estaduais, a maior parte das abordagens ou flagrantes ficou a cargo das forças de segurança pública das Unidades Federativas: policiais militares (76,8%) e policiais civis (19,1%). E aproximadamente 86% dessas abordagens foram realizadas por até três profissionais de segurança pública. De acordo com o relato de policiais, a motivação para a abordagem foi o “comportamento suspeito” feito durante o patrulhamento (32,5%) ou denúncia anônima (30,9%, sendo esta raramente documentada no processo). Outro dado surpreendente é o alto percentual de entradas em domicílio (49%), das quais apenas uma pequena parcela (15%) com mandado judicial. Ou seja, cerca de 41% dos réus foi alvo de busca domiciliar sem mandado de justiça. Nesse sentido, uma das ações da atual gestão da Senad é a construção de protocolos e formações para garantir a legalidade das abordagens policiais e evitar a produção de processos judiciais anuláveis.
Sobre a participação de órgãos especializados, nos tribunais estaduais 20% dos processos individuais foram conduzidos nas etapas processuais por estrutura especializada na repressão ao tráfico de drogas e ao crime organizado. As organizações que mais contavam com esse tipo de aparato eram os tribunais, por meio de varas especializadas (73,7%), seguidos pelas polícias civis (28,3%). O relatório mostra que 85% dos réus possuíam auto de prisão em flagrante juntado aos autos.
Para a pesquisadora do Ipea Milena Soares, uma das coordenadoras do relatório, a expectativa é que o estudo contribua para repensar métricas de produtividade das polícias – a exemplo de metas em número de prisões em flagrante. A análise mostra que são raros os processos centrados em trabalho de investigação policial: nos processos da justiça estadual, apenas 16% dos inquéritos policiais estiveram relacionados a investigações anteriores. No que diz respeito à aplicação da lei penal de drogas, ela acredita que seja necessária “mudança no foco de policiamento ostensivo para trabalho de investigação policial, maior rigor do judiciário na convalidação de entradas em domicílio sem mandado e critérios objetivos de quantidade de cannabis e cocaína, para a presunção de porta para uso próprio”, argumenta.
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)