Entenda por que a fome vai além do prato

13 de outubro de 2022 Off Por Ray Santos
Compartilhar

Por Frei José F de C dos Santos *

O hábito de nos alimentar é um grande ponto de atenção, uma vez que, embora corriqueiro e importante, passa despercebido e até irrefletido em nossa vida. Interpelado por essas e outras provocações, especialmente diante deste momento onde mais de 33 milhões de brasileiros estão inseridos em uma radical privação de alimento, divido reflexões com o objetivo de mostrar como a comida está intrinsecamente imbricada ao nosso cotidiano, a tudo o que somos e o que fazemos. 

Apesar da variedade nas abordagens sobre a alimentação, são inesgotáveis as possibilidades e perspectivas de se discorrer sobre o tema. Mas, o que de fato contribui para uma reflexão sobre a grandiosidade da questão está oculta em uma única palavra de impactantes quatro letras: fome. Quem já saiu de seu nicho cultural sabe quanto é estranho degustar paladares de outras culturas. Quando entramos na Casa de Assis e presenciamos a alegria de um migrante angolano diante de um prato de fufu (que é um prato tradicional de vários países da África), é perceptível a saudade do tempero de casa. 

Com isso, ao apresentarmos diferentes interpretações sobre a comida, podemos afirmar que não há uma única fome, tendo em vista que ela se apresenta de múltiplas formas. Quando uma pessoa é privada da alimentação básica para sua nutrição, ela não tem apenas a “dor de estômago”. Vai além… E, para entender o que significa o flagelo da fome e os seus porquês, apresento seis bases fundamentais acerca da comida que refuta seu conceito singular e ascende a pluralidade de quem convive com ela.

Comida como base da nutrição 
Alimento é uma substância que visa promover o crescimento e a produção de energia para as diversas funções do organismo. Na dimensão nutricional, a má qualidade ou escassez de alimentação está relacionada ao aumento de doenças que acometem especialmente grupos populacionais vulnerabilizados que atingem, de maneira diferenciada, grupos étnicos, extratos de renda e regiões. 

Comida como base da saúde 
Considerado um dos determinantes para a condição de saúde, a alimentação saudável tem influência de fatores afetivos, econômicos e culturais que são construídos ao longo da vida. Porém, a forma como cada um se alimenta não é escolha individual. A pobreza e a exclusão social restringem, em muitos casos, a possibilidade de uma alimentação adequada e saudável, que acaba focada em alimentos processados, ultraprocessados e produtos com muito agrotóxico. 

Comida como base econômica 
A projeção populacional para este ano é de 7,8 bilhões de habitantes no mundo e, mesmo com a produção de alimentos sendo suficiente para alimentar até 12 bilhões de pessoas, estima-se que 8,9% da população mundial está em situação de insegurança alimentar. Ou seja, a questão da fome não está na produção, mas no acesso aos alimentos produzidos, que deveriam ser um direito natural de todos, no entanto tornaram-se acessíveis apenas àqueles que podem pagar por eles. 

Comida como base política
O Direito Humano à alimentação adequada está contemplado na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Porém, infelizmente, tal direito não está entre as prioridades na agenda governamental, fazendo com que milhares de pessoas encontrem-se em situação de insegurança alimentar. 

Comida como base cultural 
Há uma diferença semântica entre alimento e comida que nos dá a possibilidade de afirmar que “toda substância nutritiva é alimento, mas nem todo alimento é comida”. O alimento é o que ingerimos para nos manter vivos, ao passo que a comida é um estilo, um jeito de alimentar-se, de criar uma identidade de grupo. O que se come, quanto, com quem, por que e por quem, transforma o alimento em comida, que está também associada à identidade e à memória de um povo, seja pela forma de preparar os alimentos, seja pelos hábitos criados em relação às refeições.

Comida como base da espiritualidade 
Nessa compreensão, o pão é o principal símbolo de sustento. Por isso, no que se refere à espiritualidade, ele (o pão) tornou-se o elemento central de uma fé que, desde seus primórdios, tem a vida como tema. Essa é a compreensão que estabelece o vínculo entre os alimentos (pão) e a confissão da fé. E, consequentemente, explica-se o porquê da preocupação de um líder espiritual com temas sociais, entre eles a alimentação. Essa relação não é uma particularidade exclusiva do cristianismo. Em outras matrizes religiosas também encontramos a relação entre alimento e divindade.

*Ordenado padre e frade solene, o frei José Francisco é formado em filosofia e teologia. Há 13 treze anos está à frente do SEFRAS, que tem como premissa combater a fome e diminuir o número de pessoas afetadas por ela no Brasil. Desde setembro de 2000, a instituição atua diariamente no combate à fome, violação de direitos e inserção socioeconômica de populações em extrema vulnerabilidade social. Guiada pelos valores franciscanos de acolher, cuidar e defender,  atende mais de 4 mil pessoas todos os dias no Brasil. 

Oliver Press,.


Compartilhar